miércoles, 25 de junio de 2014

Entre o Futebol e a Cidadania

Para Cândido Grzybowski, diretor do Ibase, a Copa no Brasil flagra o  povo excluído dos estádios e a absurda ingerência da Fifa.

Estamos naquele bom momento de Copa do Mundo de futebol. Ainda me lembro da emoção ao acompanhar pelo rádio, com meus familiares,  a espetacular vitória de 1958 contra a Suécia. Estava em visita à casa da vovó – a “babka” –, falando polonês, na pequena Carlos Gomes, uma colônia de poloneses de Erechim, Rio Grande do Sul. No entanto, todo mundo se sentia bem brasileiro apesar do sotaque, torcendo com muita emoção. Depois desta primeira conquista, sempre acompanhei a nossa seleção. Diante da tentativa de encampação do sentimento coletivo pelo regime militar, em 1970, como opositor também tentei ser contra, mas logo no segundo jogo eu estava lá, vibrando muito diante da televisão. O fato é que me deixo levar por esta gostosa emoção de torcer pelo nosso, pelo coletivo que a seleção representa, sem esquecer de todas as contradições e desigualdades.
Garrincha em 1958: inventividade e magia

Tudo isto me faz pensar no aparente paradoxo onde, de um lado, eu não resisto a ser um torcedor, a ver um bom jogo e sinceramente me emocionar. Por outro lado, vejo as insatisfações da cidadania nesta conjuntura brasileira e me sinto solidário a elas. Vou começar pelo que o futebol me parece significar. Apesar de sua origem aristocrática, o futebol se tornou entre nós uma das formas mais exemplares de exprimir a real e vibrante diversidade brasileira. 


Está em campo, disputando a Copa do Mundo, uma verdadeira seleção de brasileiros, tanto pelas origens étnicas e cores de pele, como pelas capacidades de jogar. Podemos até discordar das escolhas do Felipão, mas o Brasil real está lá, como seleção de brasilidade, jogando pela gente. O futebol é uma síntese como nenhum outro esporte e nem outra atividade consegue ser. Somos nós, lá! Sem dúvida é o esporte mais democrático, tanto pela diversidade como pelas regras universais que adota e tenta seguir. Há no futebol uma magia da simplicidade, da surpresa, da invenção, sempre dentro do possível pelas regras, como nos lembra Roberto da Mata. Mas tem mais: futebol é equipe, é o coletivo, a individualidade no conjunto, pois o que importa é jogar junto. Cada um, por mais brilhante que seja, contribui para a tarefa do coletivo e para seu sucesso. Perder, com cabeça erguida, sempre é uma possibilidade, pois nada como um dia após outro, um jogo após outro, um campeonato após outros, sem vitoriosos ou derrotados de partida. A vitória ou derrota de hoje nunca é definitiva. Existe algo mais radicalmente democrático do que isto?


O futebol até pode ser visto, por suas magias e pelas emoções que suscita, como o ópio do povo. Ainda mais que a FIFA e nossos cartolas transformaram o futebol num negócio grande, negócio beirando o ilegal, sempre explorando as capacidades de jogadores de origem bem popular. É gritante que nesta Copa no Brasil, por exemplo, o povão esteja excluído dos estádios, quando é exatamente a vibrante torcida de gente simples que torna o jogo espetacular. O que a FIFA visa é lucro, é acumulação, e isto vai contra nós, contra o esporte, o coletivo e a disputa democrática no campo. Mas apesar de tudo, a magia está lá e nos atrai.


O fato é que a gente pode tudo. Podemos parar para ver um bom jogo da nossa seleção. Podemos torcer sem culpa, sem esquecer de todos os problemas que precisamos enfrentar como cidadania brasileira. Ganhar ou perder um jogo nada tem a ver com os problemas de nosso cotidiano.  O cotidiano de antes e depois do jogo não muda, tanto nas vitórias quanto nas derrotas. Mas vai ser muito bom ganhar, nem que seja para elevar nossa autoestima… ainda mais se for sobre os simpáticos argentinos.
O fato que precisa ser sublinhado e reconhecido é que a cidadania é uma condição, é um estado, uma realidade e um sentimento combinado de múltiplas variáveis, mais do que um momento, o da Copa do Mundo. O que vivemos no Brasil hoje é um contexto de frustrações cidadãs que estão aumentando, ao mesmo tempo em que vivemos o momento da Copa. Frustrações estão latentes, alimentando sentimentos muito diversos, explosivos até.


O que os nossos políticos não entendem – e isto caracteriza a conjuntura  política – são as insatisfações que estão no ar. Há urgências e incompletudes diante das muitas e novas identidades e demandas, diante de respostas que não atendem. Devemos saudar a emergência de amplos e novos segmentos sociais, até ontem excluídos, mesmo que seja apenas como novos consumidores. Mas, de um ponto de vista democrático e de cidadania, não basta o acesso ao consumo, falta ser reconhecida e respeitada como cidadania emergente.


As demandas “da rua” são coisa séria, o que nossas elites políticas, incrustadas nos órgãos de Estado e detendo o monopólio da representação, no geral patrimonialista, tem dificuldade de ouvir e entender. Daí as insatisfações, mais prementes naqueles que se sentiram lesados pelos “negócios da FIFA”, estes generosamente suportados pelos financiamentos estatais. Nossos governantes e políticos aceitaram subservientemente a ingerência nada cidadã da FIFA. Queremos torcer, nos emocionar, ganhar, mas não venham com empulhação. Os direitos de cidadania podem até dar trégua durante a Copa, mas voltarão a cobrar o seu lugar no contexto das eleições, que por enquanto está hibernando. O que vivemos são frustrações e falta de sintonia, com sentimentos e demandas de amplos setores por mais direitos. A Copa do Mundo não é uma ponte entre a cidadania e os políticos. Ela não ajuda a esconder o enorme fosso existente, que separa, que nega direitos de cidadania como saúde, educação, segurança e transporte. O buraco criado vai voltar a ficar evidente amanhã, após os jogos. As manifestações que pipocam pelo Brasil ultimamente, muitas vezes reprimidas com violência policial descabida, são um sinal de que assim não dá.

Manifestação em junho de 2013/Foto Natasha Isis

 A Copa do Mundo traz muita visibilidade, e se tornou uma boa oportunidade para que movimentos e manifestações de insatisfações da sociedade civil fiquem mais aparentes e até constranjam governantes. Isto não é um drama, mas tem que ser encarado de forma séria. Talvez mais do que as obras que não aconteceram, importa se abrir e ouvir a rua. Algo novo só pode surgir daí. Precisamos abrir ouvidos e mentes para entender o que está acontecendo…enquanto torcemos pelo Brasil e esperamos ganhar a taça. A autoestima da vitória vai nos fazer bem.

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